Cirurgião francês acusado de violar 299 jovens admite ter cometido “actos desprezíveis”
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Um cirurgião francês reformado acusado de violar e agredir sexualmente centenas de jovens pacientes, algumas delas sob anestesia, disse esta segunda-feira, 24 de Fevereiro, na abertura do seu julgamento no Oeste de França, que tinha cometido actos “desprezíveis”. Joel Le Scouarnec, de 74 anos, enfrenta acusações de violação agravada e agressão sexual contra 299 vítimas, na sua maioria crianças na altura, num caso que levanta questões incómodas para o sistema de saúde público francês, segundo as vítimas e grupos de defesa dos direitos humanos.
Vestindo um casaco preto e óculos, falou com voz firme para confirmar o seu nome, data de nascimento e outras informações pessoais na pequena sala do tribunal de província. Várias das suas alegadas vítimas acompanharam o processo a partir de um edifício próximo.
“Cometi actos desprezíveis”, disse Le Scouarnec ao tribunal. “Estou consciente de que o mal que causei é irreparável.”
“Devo a todas estas pessoas e aos seus entes queridos o reconhecimento dos meus actos e das suas consequências, que eles suportaram e continuarão a suportar durante toda a vida.”
Naquele que é considerado o pior caso de pedofilia a ir a julgamento em França, os alegados abusos de Le Scouarnec contra pacientes estenderam-se por 25 anos, de 1989 a 2014.
O julgamento surge numa altura em que se faz um balanço dos crimes sexuais em França, após a condenação de Dominique Pelicot, considerado culpado, em Dezembro de 2024, de drogar a mulher e de convidar dezenas de homens para a violarem em sua casa.
Já a cumprir pena de prisão por anteriores condenações por violação, Le Scouarnec poderá enfrentar até 20 anos de prisão se for considerado culpado. As duas penas seriam aplicadas em simultâneo.
"Os meus clientes não esperam nada de Le Scouarnec. Em França, quer se viole uma criança ou 300, a sentença é a mesma", disse aos jornalistas Marie Grimaud, advogada que representa algumas das alegadas vítimas de Le Scouarnec, antes da audiência.
"Os meus clientes só esperam encontrar alguma dignidade, humanidade e consideração por parte do sistema judicial."
Abuso sexual de criançasLe Scouarnec foi condenado por crimes sexuais em duas ocasiões anteriores. Foi condenado a uma pena suspensa de quatro meses de prisão por posse de pornografia infantil em 2005, mas conseguiu arranjar emprego como cirurgião num hospital público em Quimperle, no oeste de França, no ano seguinte.
Continuou a trabalhar em hospitais públicos até nova detenção, em 2017, por suspeita de violação de uma vizinha de seis anos. A polícia descobriu diários electrónicos que pareciam detalhar as agressões sexuais a dezenas de pacientes em hospitais de toda a região.
Em 2020, Le Scouarnec foi condenado a 15 anos de prisão pela violação e agressão sexual da vizinha menor, bem como de duas das suas sobrinhas e de uma paciente de quatro anos.
Investigações posteriores sobre as alegadas vítimas registadas nos seus processos levaram o Ministério Público a acusar Le Scouarnec de violação agravada e agressão sexual de 299 pessoas.
François, um dos queixosos no processo e que tinha 12 anos quando Le Scouarnec alegadamente abusou dele, disse que se sentiu traído pelas autoridades. "Porque é que ninguém impediu este cirurgião de trabalhar com crianças?", disse François, que pediu para ser identificado apenas por este nome.
De acordo com os documentos do tribunal, alguns membros do pessoal do Ministério da Saúde tinham conhecimento da condenação de 2005. O ministério não respondeu aos pedidos de comentário.
Avisos ignoradosPouco depois de Le Scouarnec ter conseguido um emprego em Quimperle, em 2006, um psiquiatra do hospital alertou a direcção para as suas preocupações sobre o comportamento do cirurgião, segundo um documento do tribunal.
O hospital público de Quimperle não respondeu aos pedidos de comentário sobre o motivo pelo qual Le Scouarnec foi contratado depois de ter sido condenado por posse de pornografia infantil ou porque manteve o emprego depois de terem sido levantadas preocupações.
O procurador local Stephane Kellenberger abriu uma investigação separada sobre a possível responsabilidade criminal de outros organismos públicos ou indivíduos que poderiam ter evitado o abuso.
"Não é possível que alguém possa violar e agredir crianças durante todos estes anos sem o conhecimento das pessoas que o rodeiam", afirmou Homayra Sellier, directora da organização Innocence in Danger, que apoia 40 alegadas vítimas e é autora do processo.
No exterior do tribunal de Vannes, uma pequena cidade da Bretanha, os manifestantes empunhavam cartazes acusando as autoridades médicas de cumplicidade.
O Conselho Nacional da Ordem dos Médicos, que supervisiona a adesão ao código de ética dos médicos em França e tem poderes disciplinares, disse que estava a trabalhar com a justiça para evitar futuros danos aos pacientes.
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